quinta-feira, 1 de novembro de 2007


Poesia feita em casa:
uma breve explicação

O conteúdo desta obra, incluindo a apresentação, é de 2002. Hoje, quando posto este blog no ar, 28 de outubro de 2007, o Jorge Henrique, por exemplo, está com 10 anos, meu pai virou estrela em abril, o Beethoven, bem antes, também. A Isadora citada no poema, a I, está com eles, e no lugar dela, a II já conta quase sete anos. Ou seja: a vida, felizmente, prossegue. Já não estou mais desempregado, felizmente voltei ao mercado, como Jornalista. A internet evoluiu, blogs e páginas pessoais surgiram, possibilitando que Poesia feita em casa, ainda um sonho a ser publicado, chegue a mais pessoas, com um ou outro poema retirado do conteúdo original de mais de cinco anos atrás, outros, reescritos, aproveitados em outras obras e outros blogs (como por exemplo o Barulho d´água --www.barulhodeagua.blogspot.com, e o Karumi -- http://www.karumi.nafoto.net/, ambos também de minha autoria). Já é alguma coisa, uma ceninha do sonho se consumando! Então, aproveite, leia, e, se possível, deixe uma mensagem postada e espalhe para os amigos ao final da leitura -- o que, se você fizer, é sinal de que aprovou, certo?

Marcelino Lima , 28/10/2007
Apresentação

Poesia feita em casa está dividido em quatro partes (Ela, a mãe; Ele, o menino; A casa; O cotidiano) e reúne poesias e textos poéticos em forma de haicai e tanka, a maioria escrita a partir de janeiro de 1998, quando deixei o jornal O Diário de Osasco, último trabalho fixo como jornalista. De lá para cá, alternando raros e mal pagos free-lancers, para ocupar o tempo de sobra que um desempregado tem, entreguei-me à tentativa de fazer jorrar uma pretensa veia poética, a qual, por duas vezes, rendeu-me prêmios no tradicional Festival de Músicas e de Poesias de Paranavaí (PR), entre outros concursos dos quais tenho participado e alcançado algum destaque. Neste exercício, também uma forma de aliviar a angústia por estar fora no mercado de trabalho e sem «produzir» algo de útil, encontrei no haicai minha forma de expressão preferida, dada a brevidade e capacidade de transmitir o suficiente com o mínimo, conforme o professor da Unicamp Paulo Franchetti definiu, capturando instantes que não se repetem nas relações do homem com o próximo e com o meio-ambiente. Muitos ainda discutem se a arte popularizada por Matsuo Basho seria ou não poesia, mesmo depois de Haroldo de Campos, Otávio Paz e Roland Barthes, entre outros, terem se debruçado sobre este gênero, produzindo estudos e ensaios fantásticos que já deveriam ter sepultado, ao meu ver, esta dúvida. Impulsionado pela paixão por haicais, os textos que componho nesta forma começaram a se acumular. Chegou o momento no qual percebi que não faz sentido escrevê-los e manter tanto material guardado, juntando pó, longe dos olhos do público, sem a chance de uma avaliação crítica. Senti-me desafiado a tentar reuni-los em livro, encontrando uma unidade, um fio condutor, um corpo dentro de um determinado tema ou contexto para pô-los em papel.
Adotei
, então, o critério de agrupá-los em vários projetos de livros. Um deles é este, Poesia feita em casa, obra inspirada nas minhas vivência e experiências no relacionamento com meu filho e com minha mulher e também no meu dia a dia dentro de casa, onde terminei “confinado” pela falta de trabalho. Nestes tempos bicudos, Rosa e Jorge Henrique têm sido meus timoneiros, meus esteios, proporcionando-me inesquecíveis momentos, razão pela qual, perdoem-me se parecer pedante, são personagens em vários dos textos aqui presentes. O meu lar, doce lar, e até momentos íntimos, estão refletidos e confessados nestas páginas. Falando de forma popular: elas são o limão amargo que transformei, espero, em doce limonada ao tentar aumentar o calibre daquela tal veia supostamente poética. Um elixir para evitar o desânimo e a depressão por estar «ocioso». Com Poesia feita em casa também espero abrir as portas do exigente círculo poético, assinando um produto que, quiçá, tenha qualidade e possa apontar-me alternativas, inclusive profissionais. Aqui cabe uma ressalva: considero-me bom jornalista, com razoável capacidade de expressão e de crítica, que flerta com a linguagem poética. Sou capaz de fazer uma ou outra poesia “dez”, mas não ouso apresentar-me como poeta por ai, pelo menos por enquanto. Não tenho e nem sigo estilo ou escola, embora apaixonado por haicai. Quando escrevo, necessariamente, utilizo rimas, ou preocupo-me com ritmo ou métrica, recursos que tão bem utilizavam os saudosos João Cabral de Mello Neto e Carlos Drummond de Andrade. Acrescento, ainda: persigo a coloquialidade, a liberdade formal do itabirano, de Manuel Bandeira, de Mário Quintana, de Paulo Leminski. Mais: nesta concessão que faço a mim mesmo, em nome do conteúdo, em muitos poemas surgem termos populares, ditos como gíria. Os críticos literários, os amantes da língua puramente culta em permanente plantão, os que anseiam por novas linguagens poéticas, então, que me perdoem. Ou que me condenem: não sei se irei atendê-los, aliás, atrevo-me a não querer atendê-los .
Sobre haicai, convém também fazer alguns comentários. Oriunda do Japão, é uma forma de compor poesia já bastante praticada no Brasil e em outros países. As regras clássicas japonesas sugerem textos sem título nem rima, escritos em apenas três linhas (divididas em 5, 7, e 5 sílabas, totalizando 17) e um kigo ou termo-de-estação. O kigo geralmente é o motivo do haicai e o situa dentro de uma das quatro estações do ano. No Brasil, os membros do Grêmio Haicai Ipê, da Aliança Cultural Brasil-Japão, em São Paulo, fizeram algumas adaptações nestas regras para melhor ajustá-las à nossa língua, mantendo imutável a exigência do kigo. Uma destas mudanças diz respeito à metrificação. Ao compor, é importante tentar que a sílaba tônica da última palavra de cada linha seja sempre a quinta ou a sétima, já que as seqüentes, de acordo com a metrificação portuguesa, não são contadas. A elisão também altera a forma de se contar as sílabas. Se na mesma linha uma palavra terminar e for precedida por outra começada por vogal, ambas (as vogais) devem ser fundidas e contadas como uma só.
Muita gente, no entanto, é fiel apenas à forma em três linhas, desconsiderando quaisquer outras recomendações. Paulo Leminski, por exemplo, ficou conhecido pela sua liberdade formal, escrevendo textos antológicos aclamados pelos haijins (praticantes de haicai segundo as tradições japonesas) e vem sendo brilhantemente sucedido pela esposa, Alice Ruiz. O professor Franchetti, por sua vez, embora conserve o kigo, em nome do conteúdo, nem sempre escreve em 5-7-5. Millor Fernandes, que celebrizou o gênero nas páginas de O Cruzeiro e da Veja, usa rimas, mas esquece a métrica. Já Guilherme de Almeida (1890-1969) desenvolveu uma forma própria de escrever haicais que ficou conhecida como “guilhermina”. O «Príncipe dos Poetas» dava títulos aos poemas, rimava a primeira e a última linhas e, dentro da segunda linha, fazia rimas internas, unindo a segunda e a sétima sílabas. Eis um haicai de Almeida, intitulado Quiriri:

Calor. Nos tapetes
tranqüilos da noite, os grilos
fincam alfinetes.

Em Poesia Feita em Casa só não há haicais guilherminos, cuja composição considero difícil, quase artificial, elaborada por demais, rebuscada em certos casos. No mesmo espírito de liberdade das outras formas de poesia, entre os haicais relacionados nesta obra, nem todos atendem às regras japonesas, nem têm kigo. Eles foram agrupados em séries que falam de assuntos ou fenômenos cotidianos que aconteceram no contexto da minha relação familiar ou dentro de minha casa, obedecendo à proposta do conjunto da obra. A maioria tem travessão ou ponto final separando linhas -- esta, uma recomendação do Grêmio Haicai Ipê para tentar facilitar a compreensão do texto pelo leitor.
Quanto aos tankas, cabe também uma pincelada. A exemplo do haicai, eles devem ter uma estrutura padrão, em 5-7-5-7-7, totalizando 31 sílabas. Alguns autores, por sinal, explicam que o haicai derivara exatamente deste modelo, do qual aproveitou as três primeiras linhas para se tornar um gênero próprio, com outras peculiaridades. Em Poesia Feita em Casa desviei-me igualmente, várias vezes, desta regra, optando apenas por ser fiel à estrutura e ao conteúdo. Para quem quiser saber mais sobre o gênero, o livro que recomendo é Um Estreito Chamado Horizonte, de Raimundo Gadelha, publicado em 1992 pela Aliança Cultural Brasil Japão.

Marcelino Jesus de Lima, Carapicuíba, novembro de 2.002


Dedicatória

À musa, Rosa, e ao querido Jorge Henrique, minhas fontes de inspiração, e aos amigos inúmeros que sempre me incentivaram.

Parte I

Ela, a mãe

Dia especial
O quintal cheira a Pinho Sol,
o varal está multicolorido,
repleto de roupas e de fronhas,
nem há mais espaço
para o lote que ainda bate na Enxuta.
Em forno brando coze o ansiado bolo de milho,
e, os cães já perceberam: o dia de hoje é especial.
Assim, a qualquer hora, feitos bobos,
latem à toa um para o outro, lambem os beiços,
certos da comida fresca .
Mais alegre também está o menino
correndo pela sala entre bolas, desenvolto e fagueiro,
com o brilho dos azuis olhos intensificando
um acentuado tom róseo nas maçãs do rosto:
ELA está em casa!
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Roupas
Ao lavar a roupa,
minha mulher cantarola --
a Brastemp é o rio.

Uma blusa dela
esquecida no sofá --
Dançamos por horas


Na blusa de lã,
sobre o seio esquerdo,
um bottom da Marta.

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Trinca
Rosa adora gato,
Jorginho prefere cão.
Eu passarinho.

Tarde de abril.
Lado a lado no varal,
Duas peças íntimas.

Lençóis no varal.
Até da rua se sente
O perfume de jasmim.

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Haicai da dor de cabeça
O comprimido e ela.
Só ambos, rosa, curam
minha dor de cabeça.

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Arroz em panela de ferro
Feijão? Não, não precisa, mesmo se for com paio.
Polenta com caldo de galinha? Dispensável.
Carne de panela, batata assada na manteiga,
saladinha de agrião temperada só com limão,
tomatinho acebolado, ovo frito, bife à milanesa,
frango com cravo e pimenta do reino, por quê?
O arrozque ela prepara em panela de ferro come-se puro,
de preferência na hora, de joelhos, mesmo sem fome,
mesmo sem sobremesa e mesmo sem branquinha
ou qualquer outro destilado, importado ou de boteco sórdido.
Mas, detalhes: de iguaria assim, fina como manjar de deuses,
devem ser aproveitados todos os grãos,
mastigando-os de-va-ga-ri-nho, sentindo-se,
como quem faz amor, aroma e sabor.
E o garfo tem de ser de prata, no mínimo!
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Quando Rosa faz pães
Quando Rosa faz pães, toda a casa fica em festa,
mergulhada num ambiente que libera no ar
a expectativa de momentos inesquecíveis.
Sussurrando, já de avental à cintura,
informa-me assim que chego ao portão:
-- Hoje temos encomenda da padaria, tesouro!
Junto ao tablado da cozinha,
fico a espiar o vai-e-vem das ancas dela,
enquanto, meticulosa, ela mistura os ingredientes numa grande bacia,
e a massa, espichada, vai tomando as mais variadas formas.
Depois, olhares em silêncio, untamos as formas,
sem ligar para o excesso de manteiga que possa restar
aderido ao vão dos dedos --
afinal, ao final do trabalho, serão carinhosamente lambidos.
Por fim, com o forno já devidamente aquecido,
livrando-se do avental, anuncia:
comeremos, juntinhos, o primeiro que assar.
Na manhã seguinte, olhando a vitrine da padaria,
por alguns minutos namoro cada um dos pães,
fico me lembrando de tudo o que rolou enquanto assavam.
-- Este é dos bons, bendita é a mão que o prepara,
chega um freguês e diz, com indisfarçável gula.
Realizado com os elogios, saio fazendo figa,
torcendo para aquela fornada logo acabar,
rezando para que, ao final do dia,
ela novamente anuncie junto ao portão:
-- Amor, temos outra encomenda!


*Poema vencedor do 2º Festival de Poesia de Osasco


Parte II
Ele, o menino

Meu anjo. E minha guarda
Meu anjo tem olhos azuis e cabelos dourados.
Minha guarda também é loira.
Algo entre Dietrich e Maria Zilda.
Meu anjo é fã do Homem-Aranha e do Speed Racer.
Além de Oswaldo Montenegro ou de Zeca Pagodinho,
minha guarda não tem outros ídolos.
Mas divide com o anjo a paixão por animais domésticos.
O anjo tem ciúmes do meu computador!
Se estiver contrariado, mostra-me a língua, chama-me de “bocão”.
Contudo, o leve toque de sua mãozinha
roçando-me o rosto na hora de dormir,
ou, num momento furtivo, quando ao meu pescoço se agarra
montando cavalo às minhas costas,
cala-me, arrepia-me.
Minha guarda me afogaria dez vezes em fonte pública
se me apenas flagrasse olhando para a Gi
De um segundo para o outro, pode transmutar-se em fera.
Entretanto
, é generosa, quando dócil, entrega-se de corpo e alma,

deixa que eu me sufoque nas suas ilhas de prazer.
Meu anjo não tem asas, não.
O nome dele não é Gabriel, tampouco Ismael, Zacarias.
Minha guarda dispensa as armas, o nome dela só podia ser o de uma flor.
Ambos são mais do que rimas ou métricas.
Mais do que me protegerem fazem-me existir e ser,
encontrar o Paraíso neste conturbado e doido, doído mundo.
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Lobo mau
Empunhando o tridente do rei Tritão
(na verdade, um garfo de macarronada),
arma poderosa e de fantásticos recursos
contra os perigos do fundo do mar,
da sala, do quarto, da cozinha, da casa inteira,
a criança sentiu-se forte, dominou o medo.
Azar do lobo mau, que enquanto batia e centrifugava roupas,
uivando e tremendo, assustou-a.

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Trem a pilha-trem a pilha-trem a pilha-trem a
Abraçada ao meigo cãozinho de pelúcia,
a criança, envolta na penumbra do quarto,
adormecida, suspira, profunda e suavemente.
Aos pés da cama, o trenzinho a pilha
agora (como nós, enfim!) também descansa...
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Um menino e seu tempo
O tempo de um menino é o de brincar,
colocar um jacaré na banheira,
e conversar com ele como se estivesse diante do melhor amigo.
O tempo de um menino é o de descobrir
como quem entra no salão de uma igreja,
e percebe que Jesus, crucificado, tem um dodói igual
«que nem o» da palma da mãozinha dele.
O tempo de um menino é o de ser não ele próprio
sem nunca deixar de sê-lo,
mas sendo, ao mesmo tempo, o vizinho campeão de isqueite.
Ou, ainda, de já ser grande para poder dirigir o carro do pai,
e ir passear, veja só... no ontem!
O tempo de um menino não se gasta feito louco,
a mil por hora no veloz relógio dos anos.
Não, o tempo de um menino é integral,
é de se integrar, é de se entregar
ao que o momento oferecer e a fantasia sugerir.
Feliz é o adulto que compreender que seu tempo não passou,
nem se acabaram as oportunidades de curtir seja lá o que for,
mas que, diante de um menino, oito horas de trabalho podem ser nada,
e que o que não se pode adiar para amanhã ou para depois
não pagam o prazer de correr atrás de pombos num parque...

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O primeiro A
Compenetrou os olhinhos na folha,
pegou na mão direita o lápis,
e, às vezes com firmeza, noutras tremendo,
procurou seguir as linhas tracejadas.
Ao terminar, buscou o olhar do pai,desejoso por aprovação:
apesar de meio torto, ficou maneiro
o primeiro A feito pelo menino.

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Filme antigo
A avó chama para o almoço, mas, o menino não dá pelota:
os olhos estão grudados nas peripécias do Pica-pau.
As tarefas da escolinha, passadas por Tia Edna,
ainda estão em branco, é quase hora da aula,.
e o guri segue na “bota” de ladrões e de malfeitores
ao volante do carro novo de polícia,
com sirene e tudo, que mamãe deu no Natal.
De noite, quando o pai chega,
o relatório este-menino-é-isto-este-menino-está-aquilo
toca em rotação 45, dizima periódica, nunca termina.
Com o pimpolho no colo, papai corrige -o,
dá uma prensa à toa, pegando leve,
pois se recorda de já ter visto o mesmo filme,
de ter escutado os mesmos sermões,
mas, por culpa do Nacional Kid,
ou dos mocinhos e apaches da Gulliver,
inimigos ferozes contra os quais travava encarniçados duelos
pela posse das terras do Velho Oeste,
território que desbravava montado num cavalo branco,
brincando em um monte de areia para construção.

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Futebol

Pai e fillho jogam bola.

Quando o moleque toca nela,

e ele quem se diverte.

Na vez do pai, é ela.

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Os meninos e as nuvens

Três meninos brincavam de achar animais nas formas das nuvens.
--Vejam, lá, por cima do morro, um coelho, bem grandão!
-- E eu estou vendo um elefante e um camelo!
O terceiro apontou o caminhão do avô no céu, mas o pai o corrigiu:
-- Filho, são bichos que vocês procuram, caminhão é veículo!
-- Ah, pai, eu sei! mas o caminhão do vô leva boi, e boi não é bicho?
Como adultos sempre se metem onde não são chamados,
o menino e os amiguinhos largaram as nuvens.
Bicudos, foram brincar no fundo do quintal.
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Cowboy, amigo, pai...
Pai é um cara de sorte.
Jamais pode tirar a roupa de super-herói,
e, ainda de terno e gravata,
deve se virar para virar um bravo cowboy,
tirar um conto de fadas de uma bravata,
pegar pela mão e mostrar o norte...
Ser pai, enfim, é tarefa dura.
Exige a realização do impossível,
para tudo saber a cura,
amar de forma inesgotável e infalível,
e mesmo quando o piá assumir o umbigo,
continuar sendo aquele velho melhor amigo.
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Jorginh0
A camiseta preta
realça a cor dos olhos
azuis como esta manhã
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O menino e a lua (Binóculos)
O menino ganhou um binóculo da mãe.
Ainda na loja, ansioso, pedia que, sem demora,
lhe dessem o par de lunetas. Mas, não o estreou na hora.
Esperou até chegar em casa, onde entrou apressado,
subindo a passos largos a escada que leva ao quarto.
Debruçado à janela, buscou-a no céu: a lua
estava cheia, do jeito que tanto ele gosta.
Então, ajustou as lentes para trazê-la mais perto dos olhos
e a trouxe tão próxima que roçou uma das mãos no vazio
como se afagasse a superfície da bola amarelada.
Passou muito tempo fitando-a enluarado,
dizendo à musa coisas bonitas de se ouvir --
como promessas de todos as noites contemplá-la,
construir, quando homem, uma escada bem grande,
e virar estrela, quando morrer, para brilhar ao lado dela.
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Meu guerreiro
Um guerreiro que atravessa o tempo
e se veste com todas as cores,
um herói astuto e sempre atento
capaz de suportar todas as dores,
cujo aço traz afiado e pronto
mas, que, por onde pisa, gera flores.
Cavaleiro de armadura leve,
homem de rir e de verter pranto
espírito de menino, alma suave,
abundante em coragem e em amores
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Janelas brancas
Cada um tem sonhos.
O do meu filho não é dar um pulo na Disney,
ou, quando crescer, ser atacante do Timão,
batera de uma banda de rock.
Tornar-se ator ou casar-se com atriz?
Para estas coisas, ele nem está ai.
O que ele acha da hora é,
um dia, poder furar nuvens, dar piruetas,
fazer evoluções e manobras no céu
pilotando o próprio aeroplano.
A caminho do solo, pulando de pára-quedas,
esticar a língua pras aves, também está na lista.
Desejos à toa, como querer pegar ondas...
O inusitado mesmo é torcer para vir a conhecer
e ter entre os amiguinhos
um que resida numa casa cujas janelas sejam todas brancas.
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Tapete-voador
Já estava a páginas tantas lendo Quintana. No meio da leitura, espirrou. Quando iria prosseguir, percebeu: o filho adormecera. Tirou os óculos, também pegou no sono. Sonhou a noite inteira que ambos, num tapete-voador, sobrevoavam o faz-de-contas.
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Tempestade
-- Tempestade, marujos, abandonem o convés, protejam-se!
-- Ora capitão, calma, é só o chuveiro: é a hora de o menino tomar banho!
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Borboleta
-- Inimigo à frente, aproximando-se rápido, devo disparar um míssil, senhor?
-- Que tipo de inimigo, Flecha com Leme k-12, não o captei, descreva-o.
-- A fuselagem é alaranjada com manchas pretas, duas antenas,
parece ter vida, voa graciosamente!
-- Poupe munição, piloto, relaxe: é apenas uma borboleta,
está procurando uma flor para pousar!

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Cargueiro II
Bochecas infladas, risos presos,
pai e filho dentro da banheira,
em silêncio, concentrados,
caras de quem está esperando trem.
De repente, um estrondo, gargalhadas:
pela quantidade de bolhas que veio à tona,
passou um cargueiro lá por baixo...

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Pedras (para Manoel de Barros)
Meu filho me perguntou:
--Pai, quem tem olho de pedra enxerga?
Respondi não sei, mas expliquei:
qualquer pedra vê o que está além do próprio nariz,
embora pareça que elas nem olhos tenham,
e sentem tudo, tudinho.
É por esta razão que sempre devemos pedir desculpas
se tropeçarmos nalguma por ai.
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Helicópteros
Girando no ar,
os dedos do menino
soltam helicópteros.
Por quais rotas eles voam,
quem precisa saber?
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Avião
Um boeing risca
um traço de giz no céu.
De braços abertos,
meu filho o imita.
E ri enquanto voa.
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Algo de Picasso
Algo de Picasso, de vez em quando, baixa no meu guri. O ruim é que a mãe dele nem sempre curte as guernicas que ele pinta com giz de cera pelas paredes. Em outras ocasiões, o que rola é uma tendência a ser Drummond, e, nestas horas vale tudo: da agenda telefônica ao livro de receitas da cozinha, vão surgindo frases desconexas que ele chama de poesia. Pelas mãos do ferinha, até minha câmera já clicou instantâneos fantásticos, Cartier Bresson ficaria no chinelo. E Astaire teria de voltar rapidinho ao jardim da infância da dança se visse como o garoto é capaz de bailar...

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Bermuda

Meu filho pede para eu vestir a bermuda de grandes e fundos bolsos costurados nas pernas e atrás, uns dentro dos outros. Sei o motivo pelo qual me faz o pedido. Vamos à casa da vovó Catarina, e ele quer levar alguns dos brinquedinhos prediletos – pião, miniaturas de carros, de aviões, estilingue bolas-de-gude, super-heróis articuláveis, jogos de botão, mini-ferramentas etc. Atendo-o e o menino vai depositando o que cabe. Sorte: há uma mochila para o esqueite -- que ele deveria levar, mas, sou eu quem a levo às costas -- e o porta-malas do Monza para a bicicleta.

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Isso é o que é!

O menino descobriu: a noite é o dia dentro de uma garrafa de Coca-Cola.





Parte III



A Casa



Desordem
Sonetos, de Florbela Espanca, no bidê.
Um vagão de carga, no lavatório.
Nem o banheiro escapa:
há em todos os cômodos da casa,
no mínimo um livro e um brinquedo.
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Aos sábados
Aos sábados, ela põe tudo novo, limpinho.
Lençóis sem vincos, esticadinhos,
iguaizinhos às fronhas, os travesseiros bem folgados.
E cada colcha que só vendo,
não tem por ai, não.
É ruim obedecê-la, evitar alisar,
Perder de sentir a maciez daquelas texturas.
Recluso-me no quarto, dá gosto de ver.
E de se deitar, então, nem se fale...
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Toalha xadrez
A toalha xadrez de algodão,
verde e branca, com grandes rosas vermelhas,
quando cobre nossa mesa, a ceia,
(sempre preparada com um tempero novo,
cuja receita ela mantém em segredo), é farta.
E a noite que me espera, também.
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Chaleira
A chaleira de ágata posta ao centro
deixou ainda mais caprichosa a tarefa,
caiu como assinatura
para o poema que ela compôs,
sobre a toalha de linho xadrez,
ao ajeitar a mesa para o café da manhã.

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Os guardanapos ...
... e os panos de prato,
sempre limpinhos e bem passados,
conservados como se ainda fossem novos,
tanto ao olhar como ao tato,
soltando os aromas com os quais foram lavados...
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À mesa...
... ainda havia café e bolo de laranja, servidos como jantar de sábado, cobertos por um branco guardanapo, cuja estampa, pintada à mão, tem um lampião de jardim, acomodados numa bandeja de inox, na qual era possível mirar-se e, ainda, fatias de abacaxi. Pelo dorso da minha mão a formiga, saída do pote de açúcar, caminhava...
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Flores


Apenas três flores --
quando sopra a brisa,

perfume de manacá


Dá um trabalhão manter flores às janelas.
É preciso tirá-las do alcance dos sóis inclementes,
ou do frio minuano,
pô-las à sombra ou sob uma lâmpada,
devidamente arejadas e à salvo de pragas.
Sem contar as podas,
regá-las de duas a três vezes por semana.
É quase um ritual sexual,
cultivo e a curtição de uma paixão.
Como apreciam também as estrelas,
os luares e a brisa noturna,
são sensíveis e até mesmo caprichosas,
no momento em que os pássaros se recolherem ao crepúsculo,
deve-se devolvê-las aos lugares de antes nas floreiras
(que a cada dois meses, reclamam nova demão de tinta amarela).
A tarefa compensa:
as flores ganham viço e mais tempo de vida,
o jardineiro perde um pouco de estresse.
Os cômodos passam a ter outros aromas,
tão bons quanto os dos lustra-móveis
e os dos limpadores de pisos.
O gato fica mais alegre e caseiro,
espiando, ora, imóvel, ora inquieto,
tentando saltar ao parapeito.
Não é à toa: há sempre uma borboleta na área,
se não voando por perto,
levemente balançando as asas,
pousada na coroa de um crisântemo ou de uma margarida.


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Calçados
Um par de botas.
Um de sandálias.
Um de chinelinhos.
Lado a lado, no quarto.
Lar, doce lar.
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Faróis na foto
Os faróis dum carro
invadem a minha sala.
Por um segundo,
fica iluminado o riso
do meu filho na foto.
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Reformas na casa
Casa em reformas.
no meio dos entulhos,
um Papai Noel.

A casa reformada
ficou bem aconchegante.
Mas faltam flores.
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Os animais
Os donos nem saíram --
mas, os gatos já subiram...
... e dormem na mesa!

Lápis de cor azul –
a gata também quer pintar
a lição de casa.

Em toda a casa,
só a cama desarrumada –
Isadora nas cobertas.*

Sonho com gelo
roçando os meus pés –
passa, Princesa!

Efeito de maio --
o azul do peixe
acentua-se nesta manhã
.



Sincronia
O gato na cozinha.
Quando pinga a torneira da pia,
levemente, a orelha direita gira.
Quando da casa vizinha
o som do cánoro canário mira,
a esquerda é a que rodopia.

* Isadora é o nome de uma gata.

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Parte IV


O cotidiano

Anoitecimento

Perfume de arroz refogando,
balé de andorinhas atônitas,
centenas de luzes sendo acesas
no mesmo piscar de olhos no qual
o último filete de sol
apaga-se atrás do mar de casas
a oeste de minha janela --
anoitece...

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Festas (Natal e Ano Novo)


A tevê, desligada,
reflete o pisca-pisca --
melhor que novela.

Sentado num trenó,
um esquimó faz uma “ponta”
na cena do presépio.

Árvore de Natal –
o escudo do Corinthians
substitui uma bolinha
.

Começa o Ano Novo.
Pouso os talheres
para tomar chuva.

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Outono I

Ainda é fevereiro,
Mas, quantas folhas já varri –
sossega, outono!


Outono II
Folhas pelo chão
de ontem para hoje.
O outono
vem chegando e deixou
cartões de visita.
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Café com leite
Na superfície do café com leite
minha sombra faz meia-lua
e onde a luz do sol incide
risca nádegas volumosas
traços sutis que ainda poderiam
ser um par de seios ou uma gaivota voando
um guarda-chuva aberto sem cabo
as duas montanhas dum coração
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O Pão, o arroz e o feijão

Sorvete de coco --
antes do prato principal,
a sobremesa.

Na lata de arroz,
por uma graça alcançada,
pão de Santo Antônio.

Rajado, graúdo --
imerso numa tigela,
o feijão de molho.

Prova de carinho,
com paio, soltando vapor –
sopa de lentilhas.

Sopa de salsão --
demorou para terminar
o jantar de hoje.

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Frutas
No centro da mesa,
onde incide o sol,
travessa de maracujás.

A sombra da coroa
pela porta entreaberta --
Abacaxi pérola.


Em meio aos brinquedos
o caqui que mamãe quer
mas não encontra.


Cascas de goiaba.
Papai faz com uma faca
estrelas e luas.

Começo de tarde –
um raio de sol aquece
fatias de melancia.

Vorazes, as formigas,
antes de mim,
chegaram aos figos.

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Brinquedos e brincadeiras

A todo vapor
vai da sala pro quarto
o trenzinho de cordas.

Noite sem luz –-
dos dedos nascem bichos
de todos os tipos.

Ripa de cerca,
toalha de banho às costas ...
-- Venha, bicho papão!

Voa só três metros
mas cruza os sete mares –
avião de papel.

Veloz e corajoso,
braço direito do mocinho –
cavalinho de pau.

Monte de areia –
O carrinho novo explora
o solo da lua.

Na ponta do prego,
o pião se faz de morto,
mas gira, gira...
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Janelas

Janela aberta –
a cortina da sala
grávida de vento.

Fresta na janela --
um filete da manhã
flutua no quarto.


Tarde de novembro
O sol desenha outra janela
no piso do quarto.


Da janela do quarto,*
além de uma igreja,
vejo uma paineira.


*Haicai inspirado na letra da música Paisagem na janela, de Fernando Brant e Lô Borges


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Poesia cotidiana em forma de bilhete


Mamãe: fui levar a Princesa para tosar o pelo dela. Os dois gatinhos preto e branco que estavam doentes, infelizmente, também morreram, mas a Paninho já está de alta. Ela voltou a comer e bebeu bastante água. Retorno lá pelas 11h30, depois de uma caminhada pelo Tamboré. Fala para o Jorginho esperar por mim caso ele queira jogar Outlaws. Vou levar o celular. Ligue se precisar!

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Convite
Após breve chuva-de-manga,*
a tarde cheira eucalipto,
e uma brisa suave afaga as folhas.
Logo mais, a noite trará um irrecusável convite
para dormirmos com as vidraças abertas,
mas, antes, deixarmos as salas às moscas,
trocarmos a tv por cadeiras nas calçadas,
junto aos portões, botarmos o papo em dia,
namorarmos, ou, simplesmente,
admirarmos a lua,
enquanto as moças núbeis sonham às janelas,
a criançada se farta de tanto brincar pela rua ...


* Chuva-de-manga é como a galera de Dourados (MS) nomeia chuvas passageiras de verão. A ventania que as precedem, além de refrescar o dia, costuma derrubar as mangas já maduras, o que deu origem à expressão popular.

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Poema fugidio

Hoje pela manhã me veio à tona
o poema mais bonito que já teria escrito.
Mas, arisco, ele não me esperou chegar
aonde poderia pari-lo
e assim como veio desapareceu
na multidão de idéias que às vezes zanza
pelas vias de minha cabeça...
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Bolha de Sabão
Faz girar o mundo,
refletindo-o de ponta-cabeça.
Frágil, explode, de repente,
em minúsculas gotas,
deixando no ar um agradável
perfume de detergente limão.
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Pássaros I
Oh, mas que pena --
antenas de tv não captam
canto de bem-te-vi.

Beija-flor perdido
pelo mesmo vão do portão
entra e sai

Pássaros II

Está certo: meu quarto
está bem bagunçado.
Mas, oh, voe não:
para nós, andorinha,
há espaço de sobra!

Demorou, mas, veio.
E como tinha sede!
Agora, o beija-flor já sabe:
todo dia haverá
néctar fresco à janela.

Pardal encolhido
em pleno dia de sol.
O gato por perto...
Na hora do pulo sobre,
a ave atinou: asas!
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Cavalo branco
Dia que eu gosto é quando abro a carteira
e, dentro dela,
encontro um pacote de cromos do Homem-Aranha,
entre eles, uma figurinha do Peter Parker.
Nestas ocasiões, é batata:
o céu é azulado, límpido,
como se fosse outono em janeiro,
as nuvens algodões doces imensos
e os boeings dóceis beija-flores,
como se houvesse num prado verde e imenso
para onde se dirigiu após comer a flor da estrada,
um indomável cavalo branco...

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Linhas e agulhas
Entre botões,
dedais e agulhas, os retroses
formam um arco-íris.


Linhas II
Enquanto aguardam pela costureira,
enroladas em pequenos retroses
linhas de todas as cores sonham
com botões se desprendendo,
com bainhas descosturadas,
ou com orlas precisando de chuleio.
Ansiosas, também não vêem a hora
de formarem pares com as agulhas,
e, juntas, cerzirem uma roupa nova.


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Pequena morte
É uma pequena morte cair na cama
torturado por enxaqueca,
às dezesseis horas duma quarta de sol,
para acordar só as dez da quinta-feira.
E ainda com dor de cabeça!


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Insônia
Os cães ladram
enquanto as horas,
lentas, passam...


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O amigo ideal
Está sempre pronto para nos contar fantásticas histórias.
Ou, em silêncio, narrar aos nossos olhos fatos verdadeiros,
seja em prosa, seja em versos.
Como
professor ou como pai,

também nos ensina toda forma de conhecimento.
É o amigo ideal tanto para as horas solitárias,
quanto para os momentos nos quais se quer estar solitário.
Dia ou noite, tanto faz, acompanha-nos a qualquer parte.
Não reivindica dia santo, nem domingo, nem feriado.
Não pede aumento, não faz greves,
aceita sem ciúmes que nos envolvamos com outros,
e jamais reclama se, porventura, o abandonamos.
Em caso de saudades, basta voltar a procurá-lo:
será tão agradável como foi da primeira vez,
e, mesmo que um pouco envelhecido,
terá conservado o conteúdo de outrora,
que nos tornará a deixar absorver sem pressa, sem mágoa,
imutável na capacidade que tem de nos fazer rir ou chorar.


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Fugariscidade
Teu amor às vezes é fugaz e arisco,
sabiá que pousa em mourão.
Tudo
bem, baby: sou contra

aprisionar pássaros em gaiolas.
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À moda de Lorca
Se meus dedos pudessem
despetalar a lua,
admito: trapacearia
no bem-me-quer, mal-me-quer
só para evitar o risco de não ter com você
a chance de um amor cósmico.

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Out-Door* (Para Mário Quintana)
Se tu me amas,
ama-me aos gritos,
declara-te de cima dos telhados,
estenda uma faixa num teco-teco,
ponha um out-door à entrada da cidade.
Não te esqueças de ir à imprensa,
e de espalhar na net,
atormente os passarinhos,
azucrine a mim
com bandinha do Peru e tudo,
flores na janela da casa,
dias, tardes e noitadas de farra;
se me queres, enfim,
tem de ser bem agarradinho, amada,
que a vida é breve
e tua febre pode ser mais breve ainda...
* Recriação inspirada no poema Bilhete, de Mário Quintana


**************************************************************************************** A tarefa
Um frasco de Veja multiuso. Uma flanela. Um pano seco. Uma tarefa: tirar o pó dos livros. Enquanto a faina durar, de cada um deles, ler um capítulo. Uma crônica. Um conto. Um poema. Eta sábado belo, meu Deus!
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Aurora (Para Elisa Lucinda)
É na mesma hora:
você responde sim,
o sol aurora.
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Desjejum
No café da manhã, junto à mesa,
arrumava-se para ir trabalhar.
Seios a mostra, calcinha rosada como as coxas,
riso apenas insinuado.
Entornei o conteúdo da xícara na toalha nova,
foram ao chão faca, manteiga, pão.
De pé, beije-a entre os ombros e o pescoço,
a direita acarinhou as costas,
a esquerda apalpou uma das nádegas,
antes de, unidas em torno da cintura,
puxá-la para junto do meu peito.
Às sete horas, nosso desjejum estava completo.

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Finalzinho de tarde
Finalzinho de tarde, corações em brasa,
beijo que nos alça centímetros,
funde as almas de tão bom.
Cheiro de doce de abóbora com coco,
ainda no fogo, escapando da panela.
O sol inundando sala e cozinha.
E um locutor anunciando na tevê:
a frente fria que cobria a Capital,
está a caminho do litoral,
deveremos ter dia quente amanhã...

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Carnaval
O ar fresco da noite,
fiapo de luz da lâmpada meia-boca da sacada.
Um cravo no rosto foi o mote.
“Tire a camisa, quero ver tuas costas.”
Os dedos tateando, lascivos, cada poro da pele.
As unhas, confessas, maliciosas.
Um eriçar de pelos, tumidez.
Depois...
Quando o galo cantou, ainda se ouvia,
ao longe, ecos de uma bateria.
Gente das imediações já subia a rua,
passos arrastados a caminho do trampo.
O matutino que o motoqueiro atirou,
ainda quentinho, manchetava:
“X-9 e Portela levantam público em SP e no RJ”

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Fornalha
A noite é uma fornalha,
é preciso molhar o peito para refrescar a pele.
Os pernilongos zunem ensandecidos por sangue
e também não me deixam dormir.
Se meu amor estivesse aqui,
espantaríamos o calor e os insetos
com a chama dos nossos corpos
iluminados, apenas, pelo brilho da lua
entrando como um facho pela janela aberta;
devolveríamos nossa luz a ela,
impregnada de saliva e de sumo;
com nossos uivos.
manteríamos bem acordadas,
e, mortas de inveja, as estrelas...


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Beijo de língua
A poesia, às vezes, é ladina.
Escapa na última palavra.
E não há azogue que a atraia.
Quando menos se espera,
ela pousa num mourão.
Abre-se num barranco.
Solta-se na linha da pipa.
Ou é gol a favor, decisivo, faltando dez segundos.
Quando já se recolhe os trens,
morde a isca.
Quando já se fecha o guarda-chuva,
amarela com o raio.
Depois de satisfeita com o tira-gosto,
exala no perfume do refogado.
Ou vem aos gritos, caçando orgasmo,
égua indomada que se deixar prender,
sedenta de beijos.
querendo beijar de língua...

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Distração
Maldito relógio pegando me à traição,
pelas costas, num momento de distração.
Quinze badaladas à queima roupa,
estourando-me os ouvidos, lembrando-me:
há ainda muito para limpar e a se fazer,
a casa está zoneada, parece atingida por vendaval!
Mas, dane-se: ao inferno,
bau-bau aventais,panos, tudo o mais,
e, lixo: pra baixo do tapete, já!
Não é sempre que um passarinho emplumado de céu
tira a tarde para saracotear na minha varanda!
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Dono de casa*
Na cozinha, ainda não estou bom:
se não carrego demais no sal,
ponho pouca água, queimo o arroz.
Mas, não dou mole na faxina:
varro cada cantinho dos cômodos,
em seguida, passo pano com lavanda,
até que os pisos pareçam espelhos.
Dia sim, dia sim, tchau, pó dos móveis!
Para ajudar, a roupa suja fica com a máquina --
sobra tempo para ir ao supermercado,
dar banho sossegado no pixoxó,
aprontá-lo direitinho para ir à escola,
uniforme limpo, bem passadinho a ferro.
De volta ao batente, bate treze e dez,
avental na cintura, esponja, detergente ---
sempre há uma panela engordurada
para testar minha paciência, meu Deus?!?
Esfrega, enxágua, areia, enxuga a testa,
e, enfim, pratos, copos, talheres,
tudo fica como dantes, semelhando novos.
O relógio corre, já são quase cinco da tarde
(gastei muito tempo polindo as chaleiras da coleção!),
o menino vai sair da escola, ainda nem tomei banho.
Apresso-me, ela também está para chegar.
Recebo-a com um beijo junto ao portão,
e ouço-a relatar que teve um dia estafante,
reclamar do patrão, dizer que precisa tirar férias....
Tenho minha recompensa em seguida:
enquanto busco os chinelos dela,
afirma que a limpeza deixou nosso lar um brinco
e é gentil ao perceber, mas, guardar para si,
que me esqueci dos vidros das janelas,
que faltou também estender as roupas,
organizar a sapateira, os armários, a dispensa --
tarefas que se somarão às demais, amanhã,
em mais um dia de dura faina
na vida de um quase eficaz dono-de-casa.

*Poema vencedor do 1º Festival de Poesia de Osasco (Categoria Escrita 25 anos em diante)

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Lua e luares
No céu que cabe
no vão da minha janela
a lua cheia

Lua cheia --
o vizinho fuma à janela,
um canário canta.

Brincando de clicar,
meu filho dispara flashes –
a lua no visor.

A casca do pão
comido no jantar –
a lua da noite.

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Sol

Finalmente, o sol --
à janela o esperava
meu vaso de cravinas.

Chove sem parar.
ensino ao meu menino:
risque um sol no chão.

Dez dias depois,
roupas secam no varal –
és bem-vindo, sol!

Anoitece.
Atrás dos morro, imensa,
a laranja some.

O lápis sai da caixa --*
Pinta no céu do menino
um sol no centro.

*Poema inspirado no haicai de Alice Ruiz O amarelo sai do céu/e corre ao vento/outono dentro, publicado em Desorientais, da Editora Iluminuras.


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Inverno

Sete graus –
só o som da harpa de ventos
ameniza o frio.

Garoa e frio –
meu filho pedala
da sala ao quarto.

Tarde de inverno --
sobe fumaça do pneu
no qual o cão mijou.

Quinta-feira fria,
teve até neve no sul --
rolo mais um blues.

A chaleira chia --
minha porção sulista
pede: chimarrão.
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Insetos
Pirulito na xícara --

As formigas agora sabem

o sabor da infãncia.


Escorrem lágrimas
pelo vidro do xarope --
fim da tosse no formigueiro.

Folhas de agrião –
pousa no prato do guri
uma borboleta.

Congonhas na rota.
vaga-lumes gigantescos
rondam minha casa.

Longa vida tenhas,
meu caro pernilongo...
... longe do meu quarto!

Uma trinca no vidro
sem uma das asas
uma libélula voando
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Chuvas
Carnaval na ardósia --
antes de virar poças,
a chuva dança frevo.

Feliz com a chuva,
o canário do vizinho
acorda (-me) bem cedo.

Uma goteira –
ao amanhecer, a lata
estará furada.

Plinc… plinc… plinc… --
a goteira prolonga
a chuva da madrugada.


Primeiro ribombo --
No varal de Dona Zoraide
não ficou nem trapo.

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O Tempo

Quatro e quarenta –

O canto do galo

desperta um trovão.


Meio dia e dez,
três andorinhas no céu –
procuram almoço?


Quinze e dezenove --
a luz do sol realça
a brancura da mesa.

Dezoito e vinte --
o sol ajuda a manter
os pãezinhos quentinhos.

Meia-noite –
da rapidinha dos ponteiros
nasce um novo dia.

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Beethoven
Dorme feliz o cãozinho Beethoven.
Espichado num raio de sol,
na calçada da casa de Didi e Dodô,
sonha que é astro de cinema.
No ritmo da preguiça, a barriguinha,
cheia de polenta com carne,
sobe e desce, sobe e desce...
Alguns cachorros até têm boa vida:
se não tivesse caído na graça dos gêmeos,
e do vizinho Jorge Henrique,
Beethoven só mais um vira-latas seria,
fadado a levar pontapés aqui e acolá,
a, talvez, morrer atropelado pelo Ariston-Alphaville.
Sorte grande, ele tem seu próprio quintal –
que divide com Tofi e o gato Miska –,
a qualquer momento ganha mimos e afagos,
e mesmo tendo de vez em quando de tomar banho,
pelo menos até que cresça será o xodó, o rei do pedaço...

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Parada
As seis da manhã, de banho tomado,
dona Zoraide já estava defronte ao espelho.
Pintou os lábios de vermelho bem vivo,
penteou delicadamente os cabelos para trás,
depois os prendeu com presilha dourada.
Os botões do casaco, na mesma cor,
compunham com as fivelas do sapatinho 32,
com os detalhes da bolsa nova de couro.
Não se esqueceu do par de brincos novos,
da gargantilha, e do broche de borboleta.
Borrifou mais um pouquinho de água-de-colônia,
deu a última geral, concluiu que estava pronta.
Como gente que nunca perde missa dominical,
mais por ingenuidade do que por patriotismo,
pela enésima vez,
iria ver a parada da Independência.

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Pulo de gato
Disso eu nada entendo, sei fazer, não.
Tento pelo prazer de experimentar.
Pelo desafio de descobrir como é no durante.
De pegar as manhas arriscando.
É como meu pai dizia: a ciência das coisas
a gente aprende batendo prego e martelando o dedo,
ao serrar tocos sem molestar o nó da madeira,
danem-se os manuais e a geometria do espaço...

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No tempo dos quintais

Brinquedo era sabugo. Ou toco. Assustador era morcego no abacateiro e, perigoso, cair no poço. Dependendo do bairro, ser picado por cobra. Longe era ir de bicicleta. De ônibus, ave-maria! Inocência era colocar passarim morto na forquilha mais alta do pessegueiro: Deus sempre vinha buscá-lo. Ou comer a “gelatina” da mesma árvore, depois da chuva, para jamais ficar velho. Autoridade era o pai. E que festa quando ele nos levava à feira ou ao armazém! Felicidade era chupar uma laranja, ainda sentado na barraca. Tomar uma grapette, geladinha. Ou voltar para casa com os bolsos cheios de bala! Medo só se sentia quando São Pedro resolvia lavar o céu e arrastava móveis, provocando curtos-circuitos do diabo, oh! Santa Bárbara e São Jerônimo, valha-nos os terços e os ramos bentos. Ou quando os mais velhos liam à luz de lamparinas ou de lampiões histórias de assombração de gelar a barriga. E por falar em coisas do além, morrer era apenas virar uma estrela, ter a mesma sorte de nossos avós. E viver um tempo sem relógios. Sem muros. Com toda a liberdade possível dos quintais. Apesar dos poços, os quintais eram o mundo. E com muitas vantagens, viviam coalhados de maria-pretinha, de amora, de gabiroba...

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Balão
Passando por trás
do prédio em construção,
devagar demais...
Pelo jeito, não é um jato:
só pode ser um balão!

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Pipa
Fazendo algazarra,
guris disputaram a pipa
presa entre os galhos.
As goiabas, já maduras,
ficaram para os pássaros.
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Reinfância
Reencontrei a infância: tornei-me pai.

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Avô
Bem que dizem: ao experimentar o melado,
só se para de comê-lo quando,
já com dor de barriga, vê-se o fundo do pote.
Perdoe-me, Senhor,
mas, ousando cometer um pecado capital,
peço, de barato, mais uns trinta anos:
nem bem tornei-me pai, é verdade,
porém ainda quero ser avô.

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Virtudes
Almejo a vida sem pressa. Ou, antes, a calma do menino que longe atira seus dinossauros, certo de que mesmo se caírem no mais profundo vale,
poderão ser resgatados, ilesos. Persigo a sabedoria de quem confunde, inocente, o lugar de dormir com o de brincar, mas, sem misturar os tempos,
conhece o andar dos relógios, faz de cada segundo uma nova era,
um novo avião de papel. Ainda quem me dera ter a ternura
de uma boca pequenina de dentes-de-leite, que sabe jeitos de morder sem ferir os braços do pai que a embala como se apenas soprasse, lentamente,
roçando os pelos como se estes fossem fios de seda. Ah, se nos meus olhos o brilho da mágica idade já não estivesse esboroado por dúvidas,
com certeza, estas e outras virtudes só outros anos com o passar dos anos me acrescentariam tornando-me, então, longevo, como quem entende como tirar a essência de cada brinquedo, aproveitando só o que de melhor a existência pode dar
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